Alzira Ebe: Conto ‘O curandeiro’
O curandeiro
O velho Zé Bento tinha um único filho, Toninho, deixado pela mulher quando morrera de doença do coração.
Zé Bento nascera na fazenda e dela nunca saíra. Tudo que conhecia deste mundo era o imenso canavial, um oceano verde que se estendia em toda direção.
Assim como seu pai e avô o fizeram, após a labuta diária, Zé Bento folheava o Manual de Medicina Popular do Dr. Chernoviz, já gasto por tantos anos de uso e com marcas de mão.
No manual encontrava a descrição das moléstias, bem como os conselhos úteis e medicamentos que deveriam ser empregados em cada uma delas, de fácil formulação.
O povo das redondezas recorria a ele em busca de alívio para suas dores e males, já que Zé Bento era o curandeiro da região.
Na horta havia muitas ervas, como alecrim, boldo, camomila, hortelã e agrião. Seguia as orientações do livro para utilizar as plantas em infusão ou maceração.
Só se afastava de sua casa a fim de visitar um amigo ou parente, ou para levar alívio das dores e cura a um doente ou para velar um corpo e confortar a família enlutada com uma oração.
Das modernidades da cidade só conhecia os caminhões que transportavam a cana, os tratores, um velho radinho de pilha que trocara com um motorista por um galo briguento e o carro do patrão.
Seu filho Toninho desde criança ajudava o pai, indo até onde estava a lida, matando a sede dos trabalhadores suados, oferecendo água fresca de um garrafão.
Toninho começou a fazer pequenos trabalhos de adulto assim que teve forças para segurar uma enxada ou um facão.
Pai e filho ouviam no rádio as notícias de desastres, mortes, crises econômicas, vida de artistas, jogos de futebol e as músicas sertanejas que falavam de amor, vingança e traição.
Com isso, Toninho prometeu a si mesmo que sairia daquela fazenda e correria o mundo em busca de diversão.
Um dia, na cidade, Toninho soube que estava havendo um curso de tratorista e procurou se inscrever. Não conseguiu, pois era exigido o diploma de primeiro Grau, o que lhe causou grande decepção.
Para se informar sobre a continuação de seus estudos, Toninho foi até a cidade pedalando sua bicicleta comprada de segunda mão.
Inscreveu-se no Curso Supletivo e em aproximadamente um ano e meio, Toninho conseguiu seu diploma de Primeiro Grau, superando a primeira fase de seu projeto de vida, sendo que agora poderia dedicar-se ao aprendizado de uma profissão.
Foi na praça que viu pela primeira vez Maria, moça miúda, clarinha, de cabelos escuros e ondulados, vestida com elegante simplicidade, que lhe chamou a atenção.
Maria viu Toninho e sorriu. Aquele sorriso o emocionou e acelerou seu coração.
Domingo vai, domingo vem, Toninho sempre vendo Maria de longe, recebendo tímidos sorrisos que lhe causavam muita emoção.
Aos poucos, as trocas de sorrisos foram se transformando em trocas de cumprimentos, depois em conversas e em pouco tempo os dois já passeavam na praça de mãos dadas, bem juntinhos, de cochichos nos ouvidos um do outro, demonstrando grande paixão.
Foi um amigo que lhe preveniu que a garota não era para o seu bico, pois era filha de gente rica que morava na cidade, num casarão.
Procurou saber quem era sua família e, pergunta daqui e de lá, sem dar muita bandeira, perturbado, de coração palpitante, descobriu que Maria era a filha do dono da fazenda, seu patrão.
Nenhum dos dois contara nada em casa, pois sabiam que iriam receber desaprovação.
Entretanto, numa noite, o patrão entrou pela casa de Zé Bento, brandindo um chicote, distribuindo pancadas até que este caiu prostrado no chão.
Assim que Toninho chegou da escola, o patrão avançou para ele, batendo em seu rosto, costas e braços, gritando para que tomasse vergonha na cara, que ficasse no seu lugar que era no mato, se afastasse de sua filha e de suas terras, pois caso contrário tomaria uma pior decisão.
Toninho foi acudir o pai, que estava quase desmaiado, e juntos ficaram se limpando, passando álcool com alecrim nos cortes, para aliviar a dor e evitar inflamação.
Na madrugada, juntaram suas poucas coisas e foram se abrigar na orada abandonada que ficava em terras de ninguém, para se esconderem por uns dias até que pudessem ficar livres da ira do patrão.
Toninho começou a ganhar uns trocados trabalhando em serviços de jardinagem e limpeza na cidade, enquanto estudava e procurava uma nova acomodação.
Nunca mais viu Maria, nem na igreja nem na rua, pois a moça era vigiada noite e dia, o que lhes impedia de ter qualquer comunicação.
Toninho todo dia voltava para a orada onde o pai ficava cuidando da limpeza do lugar, que servia de um bom esconderijo e no momento era a única solução.
O povo da redondeza esperava Toninho na estrada a fim de pedir os remédios do pai para uma criança gripada, uma parturiente enfraquecida, para aliviar as dores de um velho reumático ou para acalmar um coração.
Zé Bento nunca reclamou com o filho por ser o causador daquela situação.
Só se lamentava por ter abandonado seus canteiros de ervas, pois suas garrafas de compostos estavam quase vazias e não queria se arriscar a buscar as plantas em sua antiga morada, com medo de ser surpreendido pelo patrão.
Um dia, Zé Bento ouviu um tiro e uma gritaria de dor e desespero, vindo da direção de um capão de mato perto de sua morada e correu pegar o facão.
Aproximou-se cuidadosamente do barulho e entre os arbustos viu o antigo patrão urrando de dor, apoiado no tronco de um chorão.
O homem pediu ajuda, pois quando fora pegar uma codorna que matara com um tiro, uma cobra lhe picara mão.
Zé Bento correu para pegar uns pedaços de carvão num fogão que tinha montado no chão.
Socou-os num pano e voltou apressado para colocar sobre a picada da cobra na mão do patrão.
Apreensivo, disse ao antigo patrão que não podia ajudar mais porque não tinha as ervas necessárias para fazer uma preparação.
O patrão gritava que não podia ficar ali e morrer sozinho, sem socorro e medicação.
Zé Bento retrucou que, socorro não poderia prestar, mas que sozinho o patrão não iria morrer, pois ficaria com ele até que a morte viesse lhe buscar para levá-lo ao lugar de purgação.
Alzira Ebe.
Enviada por: Alzira Ebe (Avaré/SP)
Avaré /SP